26 setembro 2005

ELOGIO AO AMOR

"Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de
verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar
sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é
mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e
das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de
antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor
passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.
Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa
variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser
desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O
resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam
"praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do
amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,
farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi
namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia,
são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem,
tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides,
borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já
ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o
desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a
comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não
é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a
pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso
"dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e
descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se
vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a
loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É
essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é
para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode.
Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para
nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de
inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A
"vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um
fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem
tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não
dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa
alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe,
não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que
a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e
minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade
pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num
momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por
muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração
guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida,
quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso
amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se
ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver
sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode
ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."


Miguel Esteves Cardoso in Expresso

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

SONHO (O MEU ELOGIO AO AMOR)
Sonhei outra vez. Não sei o que lhe hei de chamar.
Sonhei que acordei num mundo só meu. Apenas eu levitando, flutuando num dia acabado de estrear. Vagueei por sítios que não conheço mas que me eram familiares. Viajei por mares e oceanos. Respirei ventos que se formavam. Observei a chuva e o sol a desfazerem-se e refazerem-se em ciclos. Dei por mim a falar com flores, pedras e arvores. Falando de alguém para ninguém. Mas sinto algo certo, forte, que me chama e que me consome. Quero estar contigo agora. Quero poder ver-te, cheirar-te, ouvir-te, saborear-te e tocar-te. Absorver-te, abraçar-te e respirar-te. Quero falar contigo, consolar-te e reconfortar-te. Quero vestir-te e despir-te ainda mais. Quero chorar contigo. Telefonar-te e falar durante horas, ao ponto de me esquecer de dormir. Quero rir e dançar contigo numa praia ao luar e ao som do mar. Quero amparar-te quando caíres. Quero fotografar-te, desenhar-te, filmar-te. Quero sentir-te e acordar ao teu lado. Quero poder ver o por-do-sol abraçado. Quero piscar-te o olho. Quero dar-te a mão no meio de um concerto, no meio da rua sem pensar. Quero levar-te o pequeno-almoço à cama. Quero ir ao cinema ver o filme que tanto queres. Quero um jantar a dois. Quero ajudar-te com as coisas que carregas. Quero enviar-te mensagens a meio da manhã, sentir saudade e dizê-lo só por dizer. Quero escrever-te. Quero descobrir-te. Quero ser teu e quero que sejas minha.
Quero dar-te tudo o que quiseres.
Queres? Tu não tens quereres.
Puff Acordei.
Nuno | 16.12.05 - 5:55 pm |

22/12/05 02:28  
Anonymous Anónimo said...

o texto é belo!
foste tu que o escreveste?

Abraço,
MP | 22.12.05 - 1:55 am |

22/12/05 02:29  
Anonymous Anónimo said...

É verdade, parece que acordei inspirado!! Devem ser restos de whisky, ;-)!!!
Abraço

26/12/05 15:50  

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